Manuela'(Em casa)
Manuela e Jandira tentaram se encontrar por diversas vezes. Nunca dava certo. Imprevistos acometiam uma e outra, de forma alternada, como uma sacanagem descarada do destino. Manuela há tempos vinha buscando mudanças. Se inscrevera no curso de filosofia que Jandira ministrava em casa. Não era uma simples aula, era uma vivência. Manu comprara o pacote médio de sete dias. Seria uma semana imersa em trocas profundas com questões eternamente misteriosas para a humanidade. Mas finalmente o acaso coincidiu e ambas marcaram a data. Manuelita, apelido que a moça compartilhava com os mais íntimos, pois era herança do amor de seu falecido pai, estava ansiosa para se debruçar em algo completamente novo. Sempre envolvida em números, era uma engenheira muito procurada. Tinha nome na praça. E sentia falta de texturas menos exatas em sua vida. A troca com Jandira se desenhava como alternativa. Eis então que chega o dia do início. Manu viajou duzentos e cinquenta quilômetros e chegou a um interior tão pitoresco e acolhedor que já foi de cara se sentindo em casa. Jandira era uma mulher pequena, delicada, quase indefesa. Tinha os cabelos escorridos e pretos. Bem pretos, como veludo impenetrável. Recebeu toda a altura de mulher que era Manuela com café sem açúcar. Manu, formiga assumida, começou a aceitar mudanças nesse ponto. A casa da anfitriã não era muito grande, apenas o bastante. Haveria outra aluna se essa não tivesse desmarcado em cima da hora. Seria então somente Manuela e Jandira. O primeiro dia foi ansioso, apressado. Nem a destreza natural de Jandira conseguiu frear os impulsos calculados de Manuela. Veio o segundo tempo, um novo amanhecer, Aristóteles, Platão, Confúcio, Cortella, Carnal… No terceiro dia de sol, um pouco de Kant, Beauvoir, Santo Agostinho… No quarto dia, quando mergulhariam em Marx, tentando abarcar diversas esferas, veio a notícia. Uma pandemia causada pela desigualdade social e pela falta de empatia e senso de coletivo decretava um estado de quarentena sem data de validade. A situação era de fato, grave, muito grave. Grave também ficou a expressão de Manuela que por alguns minutos ficou sem saber o que pensar. Ainda faltavam três dias para seu curso imersivo terminar e o mundo tinha virado de cabeça para baixo. Jandira tão pouco se alterou. Permaneceu serena como seu contorno frágil e presente. E propôs: “vamos terminar. Depois a gente descobre se você volta para sua cidade”. Manuela consentiu atendendo a um instinto primitivo que a deixava extremamente confusa. Veio o quinto estágio. E por ali, nem Sócrates, Voltaire e nenhum outro pôde estancar o que já corria sem timidez entre aquelas duas mulheres… Um desejo oculto, aquecido em forno alto, gratinado com expectativas e também inseguranças. Refletido nos espelhos da casa de Jandira e na mente de cada uma delas. No sexto amanhecer, acordaram na mesma cama. Nuas. De ressaca e com os flashes da noite passada: o noticiário no mute atualizava os números assustadores de novos casos e óbitos. A garrafa de vinho foi aberta. E mais uma e outra, e outra. Karen Dalton tocava no vinil, servindo de pano de fundo para o primeiro beijo. Em seguida vieram mãos, dedos mergulhados em outras profundezas. Os lábios roçavam suas peles arrepiadas. Fizeram no chão da sala. O disco já arranhava pedindo o Lado B, e as duas, Manuela e Jandira, gozavam. Uma na outra. E a outra sendo duas. Duas desconhecidas, conhecidas de poucos dias. O último dia raiou entre nuvens indecisas. Carregadas e molhadas, desaguadas no meio da tarde em poucas gotas. No fim, aquele arco íris que nasce da esperança de um dia triste, fez Manu dizer: “não volto não. Fico aqui, pensando perto de ti”. Jandira, iluminada pelo prisma do jogo de luz que vinha incisivo da rua, aquietou a grande Manuelita em seu colo. Os detalhes estavam já todos ali. Permaneceram. Se amando em clausura, isoladas em dupla. E Manuela estava em casa.