Bianca’;Terapia;
Bianca estava tragada dentro de seu carro vinho opaco. Chamava atenção por onde passava. Ela e o carro. Que atribuía à moça um gosto um tanto peculiar para uma fresca mulher de vinte e cinco anos. Uma idade bonita. Ainda imatura. Mas Bianca não sabe disso. Ela investe apaixonada em seus impulsos e vontades. Flerta com o mundo. Dá literalmente a cara à tapa. Gosta sim de levar umas na cara. Nada que lhe tire o sangue. Só uma pressão avermelhada, carimbada no desejo que chama por mais. Tão sexualmente ativa, nos poros, nos quadris e na garganta. Bianca sempre se deu com vontade. Uma ambição intrínseca por ser desejada, tomada, varada, solta no corpo de alguém tão entregue quanto ela mesma. Bianca, linda como uma transparência em tecido voando sobre um campo vasto e florido. Uma rapariga solar, leve, livre. E antes de tudo, tão dela mesma. Pois bem! Bianca tragada em seu carro vinho opaco trepava com suor embaçando o vidro do carro, um clássico no meio de um estacionamento relativamente perto. Perto de transeuntes, curiosos e desavisados. Seu corpo tremia. A perna esquerda doía um pouco com o espasmo violento que enfrentava de tão profundo tesão. O automóvel balançava e Bianca engolindo o parceiro daquela noite de lua redonda, achava ser impossível ser vista no grau de calor que fazia ali dentro. Mas ela viu. Em seu alto ponto, com a esquerda perna tremilicando, já sem forças, ela o viu, seu terapeuta. Ele a viu também. O segundo exato onde ambos se perceberam, ela cavalgando no banco traseiro e ele em meio às compras embrulhadas em sacolas ecológicas. Tudo quase foi ao chão quando ele reconheceu sua paciente. Mas os olhos não conseguiram desviar. O terapeuta ficou estático, parado, sem mover músculo, segurando firme o que permaneceu em seus braços, tornando-se uma espécie de cortina para os inesperados sentimentos que o invadiam naquele instante. Bianca, por sua vez, chegou na vez e jorrou naquele que a comia insaciável. Jorrou contraindo suas internas paredes e olhando fixo aquele que uma vez por semana ouvia toda a sua intimidade, sem filtro, com uma pura sinceridade. Sinceridade de sala, de consultório. Uma relação de mão dupla profissional. Assim era.
Kátia’.Num futuro de ex.
Kátia recebeu o telefonema de Mariano e achou estranho. Ele era seu colega de faculdade. Estudavam designer de interiores. O rapaz convidou a moça para um café no fim da tarde ou para uma cerveja no fim daquele mesmo dia. Era uma quarta, não teriam aula pois a professora estava de cama. Kátia, meio receosa, aceitou o inesperado convite, pois estava mesmo entediada, e claro, curiosa. Extremamente. O dia transcorreu como qualquer outro com suas rotinas encaixotadas em pequenos apartamentos, barracões e aglomerados escritórios espalhados pela cidade. Sorte de quem podia dispensar horas em um jardim de uma casa grande. Kátia vivia em uma quitinete. Saiu de seu singelo quadrado e foi para o boteco dos universitários esperar por Mariano. Dezenove horas pelo horário de Brasília. Passado um pouco, ele chegou. Era um homem bonito, alto, moreno, de olhos amendoados e vivos! Um esteriótipo latino da melhor qualidade! Era popular pelos corredores da Universidade não por ser apenas bonito, mas principalmente por ser de fato, um cara gente boa! Cumprimentava quem cruzasse seu caminho. Mesmo quando seu humor estava azedo. Kátia viu aquele pedaço masculino sorrindo em sua direção e sentando-se defronte a sua ânsia de saber finalmente o real motivo daquele encontro. Ao pensar nisso, a espinha de Kátia gelou… Aquilo seria mesmo um encontro? “Meu Deus!” pensou alto. Ao que ele indagou e ela por sua vez ruborizou. Sentiu o rosto inteiro queimar, arder, pegar fogo. Ele reparou mas preferiu não comentar. Ela agradeceu silenciosamente a gentileza velada dele. Começaram a papear. Amenidades, cotidianos como o tempo e a aula passada em que uma colega mostrou os seios ao professor machista. “Foi um protesto” defendeu Kátia. Mariano concordou. Depois de três garrafas ele tascou: “tava louco pra conversar contigo… Você tá saindo com a Melinda né?”, Kátia respirou sentindo um grande alívio ao constatar que ele sabia de suas preferências sexuais. Não, aquilo não era um encontro. “Sim, estamos nos conhecendo. Ela é uma ótima garota!”, kátia respondeu. Ele então veio mais seco, pausado, um pouco pesado e disse: “ela é minha ex. Aliás, ela é a minha segunda ex com quem você sai”. Kátia ficou branca. Toda a queimação de outrora, avermelhada, dera lugar a uma fisionomia digna de um autêntico fantasma. Mas Mariano sorriu novamente, mais bonito do que antes, quando andava junto ao encontro da mesa onde Kátia o esperava. Entre dentes saudáveis ele afirmou que não havia problema algum. Ele só queria conhecer melhor a colega de turma que tinha tão bom gosto quanto ele. Isso fez Kátia sorrir de volta, descompromissada, leve, contente como uma adolescente que troca o primeiro beijo. Kátia não era nem de longe uma jovem crua. Uma balzaca que cursava sua segunda graduação e que já tinha experimentado muitos corpos. De todos os gêneros. Gostava de pessoas. Mas definitivamente desfrutava melhor os corpos femininos. Apreciava a delicadeza, a maciez tranquila daquelas de intuição intrínseca, profunda. Mulheres… Ah, como as amava. E sentia-se amada de volta. Ao final de um engradado que varou a chegada da madrugada, de um novo dia, eles se levantaram e se abraçaram. Kátia morou ali, naquele abraço pelos segundos que duraram. Ou foram minutos? Não saberia dizer. Tudo parecia meio paralisado. Ela sentiu então a dureza pontuda dele. Foi quando se afastou. E viu Mariano arder agora. A pele toda tomada de um roxo sem vergonha que denotava muita, muita vergonha. Um paradoxo ambulante. Nele, nela… Kátia sentiu o desejo dele e o desejou de volta. Em silêncio deram as mãos e tomaram um carro que ela já havia chamado pelo aplicativo. Foram para o quadrado dela. E fizeram o espaço se apequenar ainda mais diante da imensidão que foram ela e ele ali, nus, suados, dois vulcões entregues a um desejo genuíno, surpreendente, tomado. Kátia tomava o corpo de Mariano como se toma uma coca-cola depois de tanto tempo sem tomar. Sabe que não gosta tanto mais. Sabe que não faz bem. Mas toma ainda sim, a goladas urgentes, secas. Ele chegou ao fim rápido para os padrões dela. Provavelmente ele também escondia urgências. Ela se abriu mais e se entregou aos lábios e língua dele. Não sabe quanto tempo se passou. Mas o suficiente para sentir as bolinhas de gás refrescarem seu corpo. Ele por ali, não tinha pressa. Mas enfim Mariano foi embora. E Kátia adormeceu com o sol despontando no horizonte gélido das primeiras horas de uma fresca manhã. E sonhou. Sonhou com a pequena Melinda. Linda, linda!
Manuela'(Em casa)
Manuela e Jandira tentaram se encontrar por diversas vezes. Nunca dava certo. Imprevistos acometiam uma e outra, de forma alternada, como uma sacanagem descarada do destino. Manuela há tempos vinha buscando mudanças. Se inscrevera no curso de filosofia que Jandira ministrava em casa. Não era uma simples aula, era uma vivência. Manu comprara o pacote médio de sete dias. Seria uma semana imersa em trocas profundas com questões eternamente misteriosas para a humanidade. Mas finalmente o acaso coincidiu e ambas marcaram a data. Manuelita, apelido que a moça compartilhava com os mais íntimos, pois era herança do amor de seu falecido pai, estava ansiosa para se debruçar em algo completamente novo. Sempre envolvida em números, era uma engenheira muito procurada. Tinha nome na praça. E sentia falta de texturas menos exatas em sua vida. A troca com Jandira se desenhava como alternativa. Eis então que chega o dia do início. Manu viajou duzentos e cinquenta quilômetros e chegou a um interior tão pitoresco e acolhedor que já foi de cara se sentindo em casa. Jandira era uma mulher pequena, delicada, quase indefesa. Tinha os cabelos escorridos e pretos. Bem pretos, como veludo impenetrável. Recebeu toda a altura de mulher que era Manuela com café sem açúcar. Manu, formiga assumida, começou a aceitar mudanças nesse ponto. A casa da anfitriã não era muito grande, apenas o bastante. Haveria outra aluna se essa não tivesse desmarcado em cima da hora. Seria então somente Manuela e Jandira. O primeiro dia foi ansioso, apressado. Nem a destreza natural de Jandira conseguiu frear os impulsos calculados de Manuela. Veio o segundo tempo, um novo amanhecer, Aristóteles, Platão, Confúcio, Cortella, Carnal… No terceiro dia de sol, um pouco de Kant, Beauvoir, Santo Agostinho… No quarto dia, quando mergulhariam em Marx, tentando abarcar diversas esferas, veio a notícia. Uma pandemia causada pela desigualdade social e pela falta de empatia e senso de coletivo decretava um estado de quarentena sem data de validade. A situação era de fato, grave, muito grave. Grave também ficou a expressão de Manuela que por alguns minutos ficou sem saber o que pensar. Ainda faltavam três dias para seu curso imersivo terminar e o mundo tinha virado de cabeça para baixo. Jandira tão pouco se alterou. Permaneceu serena como seu contorno frágil e presente. E propôs: “vamos terminar. Depois a gente descobre se você volta para sua cidade”. Manuela consentiu atendendo a um instinto primitivo que a deixava extremamente confusa. Veio o quinto estágio. E por ali, nem Sócrates, Voltaire e nenhum outro pôde estancar o que já corria sem timidez entre aquelas duas mulheres… Um desejo oculto, aquecido em forno alto, gratinado com expectativas e também inseguranças. Refletido nos espelhos da casa de Jandira e na mente de cada uma delas. No sexto amanhecer, acordaram na mesma cama. Nuas. De ressaca e com os flashes da noite passada: o noticiário no mute atualizava os números assustadores de novos casos e óbitos. A garrafa de vinho foi aberta. E mais uma e outra, e outra. Karen Dalton tocava no vinil, servindo de pano de fundo para o primeiro beijo. Em seguida vieram mãos, dedos mergulhados em outras profundezas. Os lábios roçavam suas peles arrepiadas. Fizeram no chão da sala. O disco já arranhava pedindo o Lado B, e as duas, Manuela e Jandira, gozavam. Uma na outra. E a outra sendo duas. Duas desconhecidas, conhecidas de poucos dias. O último dia raiou entre nuvens indecisas. Carregadas e molhadas, desaguadas no meio da tarde em poucas gotas. No fim, aquele arco íris que nasce da esperança de um dia triste, fez Manu dizer: “não volto não. Fico aqui, pensando perto de ti”. Jandira, iluminada pelo prisma do jogo de luz que vinha incisivo da rua, aquietou a grande Manuelita em seu colo. Os detalhes estavam já todos ali. Permaneceram. Se amando em clausura, isoladas em dupla. E Manuela estava em casa.
Madalena’….Quarentena….
Madalena ficou em casa. Mesmo com tanta vontade de mundo. Mesmo com tanto corpo na alma. Madalena era puro amor ao próximo e a ela mesma! Tudo bem, tinha sorte. Seguia junto dela um verdadeiro parceiro em casa. Um casamento de quase treze anos que passava por novos votos em novos tempos. Marco sempre trabalhou muito! E de tão amado, era muito requisitado por família e amigos. Madalena também. Por isso, o que ela mais gostava era dos domingos livres quando os dois conseguiam ficar, de fato, somente os dois. Isso era raro. E assim, por muitas vezes, não faziam nada. Dividiam o ócio e a preguiça de se saber sem horários e planos. Até que um dia foram obrigados a ficar em casa. O mundo foi acometido por uma pandemia de ignorância e estafa. O convívio passou a ser intermitente, consecutivo, junto! Houve então uma série de relatos sobre separação. A humanidade andava absurdamente tão infeliz que sustentavam casamentos falidos pela falta de tempo de olhar para a própria vida. Uma loucura. Mas com Madalena e Marco era o presente, um presente. Era a pausa. O tempo de colocar seus corpos em prática. De alcançar uma intimidade ilimitada. Se possuíam como famintos num labirinto. Por hora, sem saída. Mas deliciosamente instigante. Um jogo real da vida envolto em peles, gargalhadas, braços e entre pernas. Toda noite seus quatro pares amanheciam ainda entrelaçados. Parecia amor. Acho que é isso. Amor. O amor. Essa dádiva que move os encontros e as permanências. E justiça seja feita, também as separações. Porque quando não dá mais, para dar, para continuar, é um ato de amor ao outro e a a si mesmo, se separar. Mas Madalena e Marco eram realmente diferentes…
Santa’.Ser.
Santa sentou-se sozinha para lavar-se. Ardia, pinicava, ascendia. Santa estava logo em chamas. Suas labaredas respingavam livres e pelantes. Santa sentia a enxurrada que invadia sua vagina correndo com violência para dentro do santuário dela. Suas profundidades, suas entranhas. Seu centro ligado à ancestrais que orquestram de algum lugar, qualquer lugar, os tremores duros que seus músculos envolto em pele quente resultam. Como se Santa fosse pedra robusta e bruta no horizonte da estrada. E ao se aproximar dessa montanha, percebe-se a marca d’Água preenchida de água a escorrer pela parede do corpo estrondoso. E o sol está a pino no meio do céu liso e azul, queimando junto com o fogo que nasce de dentro desse corpo-pedra-montanha que tem tudo dentro de si. Pois pode ser tudo, se conhecendo, se cavando, revelando-se selvagem, movimentando-se dentro, do fluxo, fluindo leve e densa, como tem que ser. Ser. Santa era ali naquele instante, ainda mais Santa. Dona do seu prazer.