Lúcia Helena’.Na dor.
Lúcia Helena não tinha rodeio nenhum. Era incisiva e precisa. Como a própria medicina lhe exigia. Mas Lúcia Helena, antes de tudo, sempre foi espontaneamente livre. Sempre fez o que quis, o que escolheu. Saiu de casa cedo, foi a primeira de sua turma na Universidade. Se formou quase antes do tempo pois foi brilhante em sua residência. Na vida pessoal não era diferente. Teve alguns namoros sérios mas logo percebeu que a monogamia não servia para ela. Uma mulher sem meia hora, fascinada pela vida. Lúcia Helena trepava com enfermeiros, médicos, e claro, com os residentes. Lúcia Helena dava. Dava com amor, com paixão. Mas tudo era tão efêmero que o sabor do presente se fazia completo. Um dia, passando por uma livraria, Lúcia Helena comprou um exemplar muito bem ilustrado do Kama Sutra. E como uma aluna disciplinada estudou cada posição. Testou todas elas. Com eles e com elas. Lúcia Helena era livre. Não ligava para a opinião dos outros. Escutava apenas seu coração. E a flor pulsante que carregava entre suas pernas. Lúcia Helena, uma cardiologista de respeito. Uma mulher voraz, faminta. Salvando vidas. As dos outros e a própria. Lúcia Helena, uma cidadã sem hipocrisia. Uma pessoa sincera.
.Saborela- Parte dois.
Lá no alto, longe da cidade intensa, chef e barista cozinham todos os seus desejos. Transam como animais famintos, sedentos, enlouquecidos. O cheiro dos dois corpos juntos e misturados exala por todo o prédio. Desce pelos canos, é levado pelo vento. Todos, da cozinha às ruas, sentem algo diferente no ar. Depois de cada um gozar, precisam descer e voltar para o trabalho. Calados e levemente suados, os dois desviam dos olhares fascinados dos outros funcionários. A chef recomeça sua banana flambada e o barista corre para preparar os muitos cafezinhos dos já saciados clientes. Os dias correm e essa nova rotina se instala. Na cozinha agitada, todos, em algum momento, sentem falta do novo casal. Nina e seu barista. O restaurante começa a ganhar mais adeptos. A fama cresce e se faz necessário expandir os negócios. Barista e chef agora são sócios. E juntos, percorrem a cidade em busca de prédios cada vez mais altos para abrigar as muitas franquias. Testam cada terraço. Aos beijos e mais beijos. Nina tem transado tanto que até emagreceu um pouco. Mas continua cheia, como a lua, plena. A boca sempre avermelhada. Adora dar de comer aos que têm fome. É o que melhor sabe fazer. E gosta ainda mais de ser tomada. Como um autêntico e saboroso café. Gelado ou quente, com chantilly ou leite. Mas precisa ser devagar. Um bom paladar sabe degustar e aproveitar cada nota de baunilha, cada ingrediente escondido. Mas sentido. Deliciado. Comer, beber… Um prazer tão básico e necessário. Para Nina é profissional e essencial. Outro dia, o barista pediu as contas. Desfez a sociedade e foi embora da cidade. Nina não chorou. Não se lamentou. A chef simplesmente entendeu que alguns pratos acabam. Algumas frutas enjoam ou não amadurecem nunca. Tudo bem. Estava pronta para ser comida. Devorada pedaço a pedaço. E tomada é claro. Em uma bela taça de vinho. No dia seguinte à saída do barista, lia-se um cartaz pendurado na entrada de Saborela: “Procura-se sommelier com bastante experiência”.
.Saborela – Parte um.
Nina metia a boca em tudo o que via. Desde pequenina, precisava sentir com o tato da língua todos os sabores de suas descobertas. De alimentos a objetos. Nada passava por ela sem o seu crivo palativo. Texturas, formas e tamanhos eram conhecidos de dentro para fora. Seu pai enlouquecia e berrava de onde estivesse: “feche a boca Nina Maria”. Mas a boca não obedecia. O tempo correu, Nina cresceu. Seus lábios também cresceram, carnudos e vermelhos. Como os morangos do Mercado Municipal de São Paulo. Os mais caros. Porém, os mais desejáveis. Nina também se tornava cara. E claro, facilmente desejável. A cada ano, mais experiência sua boca ganhava. Nina agora era chef de cocina. Por aquelas papilas gustativas passavam os pedaços de carnes mais suculentos, as frutas mais raras e os doces mais explosivos do setor. A moça vivia entre mel, vinhos, tâmaras, e toda uma infinidade de sabor. Nina. Chef, empresária, empreendedora confiante. Mulher sagaz e inteligente! Mas algo parecia sair do ponto. Ela própria se deu conta. Todo aquele corpo que emoldurava sua alma não poderia suportar tantos olhares gulosos que ali pousavam. Nina passou a comer. Desenfreadamente. Nina comia para não ser comida. Nenhum paladar no mundo poderia degustar com a sinceridade necessária todo aquele panelão de mulher. Nina queria na verdade, ser comida de colher. Como um bom brigadeiro recém feito. Sem pressa, sem apego. Apenas vivendo o momento do encontro entre criador e criatura . Nina engordou. E muito! Fato que deixou sua boca ainda mais avermelhada. Um dia, cansada da labuta diária, adormeceu em cima da banana flambada. Acordou inteiramente adocicada e mordiscada. Por todo o seu corpo havia uma marca. Alguém estivera por ali. Por todo aquele corpo. Nina levantou de repente e gritou: “quem aqui me provou?” E prontamente o barista de seu restaurante levantou o braço. Todos o olharam. A grande mulher então questionou: “e gostou?” O rapaz, um pouco encabulado, respondeu-lhe que sim. “Deliciosa!” Nina por sua vez, sem esboçar mais nenhuma palavra, pegou o rapaz pelo braço e subiu as escadas. Até o terraço.
Continua…
Laurabeatriz’.Gulosa.aaaaa.
Laurabeatriz ia à padaria todo santo dia. Bem cedo. Muito antes dos carros apressados se acumularem inertes no trânsito de cidade grande. Amava o frescor do novo. Fresh! A brisa suave, os passarinhos compondo a trilha sonora daquela paisagem ainda quase deserta. Laurabeatriz não caminhava muito. A padoca de seu Júlio era muito próxima à sua casa. Um aconchegante lar que dividia com sua mãe e a irmã caçula. As três moças valorizavam um autêntico pãozinho francês com uma boa dose de café. E Laurabeatriz há exatos dois anos não deixava sua mãe se levantar cedo. A primogênita fazia questão de oferecer esse mimo a família. A garota ia pensativa e serena. Quando se dava conta, já estava adentrando o paraíso dos pães. Seu Júlio, atrás do balcão, aguardava a sua primeira freguesa do dia com um largo sorriso de satisfação. Laurabeatriz passo a passo, cruzava todo o espaço com uma sonolência encantadora. Fresh! Seu Júlio estendia as mãos para frente com a ansiedade de um menino. Laurabeatriz se agachava para abrir a portinha do balcão e ao se levantar, contemplava seu Júlio completamente pelado e duro. E tudo começava ali mesmo, debaixo do bendito balcão. Laurabeatriz montada no padeiro gozava escorrendo de seus entremeios. Era tudo muito rápido! E saboroso. Os dois se recompunham e se despediam com um abraço maroto de velhos amigos. Mas Laurabeatriz não ia embora sem antes levar na sacola seis pãezinhos tipo francês, uma torta de morango e um grande sonho. E lá ia de volta, agora com mais vigor, cantando e desviando das rodas atrasadas do asfalto, Laurabeatriz. Quando a mãe e a irmã se levantavam, a mesa já estava posta. Decorada com flores e doces. E travessuras… Mas dessas, só Laurabeatriz sabia. E assim começava o dia. Com um gole no café forte e uma generosa mordida no grande sonho de padaria.
Fabíola’…Trinta e três anos…
Há treze anos não se encontravam. Dividiram em algum lugar do passado, a mesma cama por vinte longos anos. Foram felizes por muitos deles. Mas um dia, Fabíola se atracou com outro rapaz. E Marcelo então sucumbiu. No momento em que soube a traição da esposa, a mãe de suas duas filhas, ele caiu. Marcelo escureceu como o negrume da noite na mata. Permaneceu apático por um mês. E ao final de trinta e um dias, pediu o desquite. A separação foi dura e parecia durar os mesmos longos vinte anos de união. Todos saíram feridos. Fabíola seguiu seu caminho viajando pelo mundo. Sentia fome de novidade. Conheceu todos os cantos e recantos. Conversou com uma infinidade de pessoas e experimentou momentos e comidas excepcionais. Marcelo ficou em casa, mesmo cenário de outrora. Tinha a companhia das filhas. O relógio andou. Correu. As meninas se formaram e se casaram. Marcelo, solitário, sentado no banco de esquina de um tradicional bar da cidade, viu Fabíola cruzar a pista em sua direção. Marcelo sentiu o coração pausar por doloridos cincos segundos. Que pareceram durar vinte anos. Longos. Os cabelos de Fabíola estavam livremente longos. Soltos. Ela estava magra, séria, e tocava o asfalto de salto, muito determinada. Fabíola demorou treze anos para atravessar aquela rua. Marcelo passou treze anos sentado naquele banco de esquina de um tradicional bar da cidade. À espera dela. À espera de Fabíola. Ela chegou, se aproximou e sorriu. Com a troca de olhares, tudo ao redor começou a girar e girar… Até parar. Por completo. O mundo todo parecia estar no mute. Sem som, sem tempo ou espaço. Fabíola deu mais um passo e Marcelo abriu seus braços. Ela caiu. Caiu dentro dele. Sem reação. Se deixando levar. Deixando fluir. Todos aqueles vinte anos ainda estavam ali. Tatuados no corpo dele. Gravados nas células dela. Os seios dela nas mãos dele. A boca dele no ventre dela. Os dois ali, novamente. Por quanto tempo? Não queriam pensar. Estavam exaustos de julgar. De repente, não havia mais passado ou futuro. Somente o agora. Era tudo o que tinham. E assim, o ex casal permaneceu. Fincou. Grudou. Germinou.